terça-feira, 1 de março de 2016

Maria Helena Mateus: "Unificação ortográfica não tem como finalidade diminuir diferenças entre PE e PB"

Maria Helena Mira Mateus, professora catedrática jubilada pela Universidade de Lisboa, é um dos nomes de referência da linguística em Portugal. Coautora da Gramática da Língua Portuguesa (2003), dá agora continuidade ao ciclo de entrevistas do Estudar a Língua, abordando um dos assuntos mais discutidos nos últimos anos: o Acordo Ortográfico. E chama ainda a atenção para aspetos fundamentais da língua que são "descuidados" nos programas de ensino.


Foto: Ciberdúvidas
O Ministério da Educação do Brasil está a estudar medidas para retirar a literatura portuguesa do ensino. Que consequências a longo prazo poderiam ter tais medidas para a língua portuguesa e para uma maior unicidade da língua entre Portugal e o Brasil?
Não vejo que manter ou retirar o caráter obrigatório do ensino da literatura portuguesa tenha qualquer influência na manutenção das diferenças existentes entre as variedades do português europeu e do português brasileiro. O uso quotidiano da língua ultrapassa imensamente a influência que pode advir do conhecimento de textos literários. É evidente por outro lado que, ao retirar do ensino a obrigação de incluir alguns módulos sobre a literatura portuguesa, se diminui o já pouco conhecimento que existe no Brasil sobre épocas e características dessa literatura, ficando entregue aos professores a decisão de ensinarem aspetos desse tema de acordo com os seus interesses pessoais. Tendo em conta que o ensino de autores portugueses não tem apenas como objetivo discutir aspetos linguísticos, penso que se deve fazer sobressair neste ensino os aspetos culturais que a literatura sempre transmite. Julgo também necessário que se dê lugar a outras variedades do português como as variedades faladas em África, por exemplo. E por fim acho fundamental que a literatura produzida em língua portuguesa, de qualquer das variedades, seja objeto de meios de comunicação e de formas de apresentação ao público estimulantes e esclarecedoras.


Estaremos a caminhar para uma divisão, além da já existente divisão dialectal, entre o português do Brasil e o português europeu? Há algum papel do AO nesse caminho?
A preocupação do AO em unificar a escrita entre as variedades da língua portuguesa tem um objetivo relevante para a expansão do livro e de outros meios em que a grafia da língua seja necessária, e tem uma concretização económica não despicienda. Trata-se apenas de uma unificação ortográfica que não tem como finalidade diminuir as diferenças entre português brasileiro e português europeu (ou entre outras formas de falar português nos países que pertencem à CPLP), diferenças que são evidentes na oralidade da língua. A manutenção das variedades no âmbito de uma certa língua (como o português, o inglês, o francês ou outras línguas que foram “exportadas” no processo de colonização) é uma opção política e representa para os cidadãos de vários países o interesse de estarem integrados numa vasta área que tem em comum a língua em que falam e em que escrevem. É evidente, por outro lado, que estas variedades exibem, no plano interno de cada uma, algumas diferenças que correspondem a grupos geográficos ou sociais e que se denominam dialetos, o que só reforça o conceito de que a variação das línguas é universal e se processa no tempo, resultando de vários fatores, sobretudo do contacto entre línguas.

Falando do AO, já se cumpriram seis anos desde a sua implementação, mas muitos falantes ainda não o aceitaram. Há consequências possíveis para a língua (como por exemplo, haver ortografias diferentes entre diferentes facções da sociedade)? 
As diferenças que vão alterando uma língua em consequência da sua utilização pelos falantes só em casos muito excecionais estão relacionadas com mudanças da grafia. A ortografia de uma língua é estabelecida de forma convencional e representa a normalização da escrita; é decidida geralmente no seio das academias de letras ou de ciências e não altera a pronúncia; é portanto sempre secundária em relação à oralidade. Na língua portuguesa, uma das primeiras reformas ortográficas data de 1911. Foi com esta reforma que se decidiu suprimir o <h> que se associava a consoantes em certas palavras como “pharmacia" representando uma aspiração que já não era sentida na língua oral. O primeiro acordo ortográfico entre Portugal e Brasil data de 1931 e aí se propunha a eliminação das consoantes “mudas” que fazem parte do novo acordo de 1990. Tendo presente o caráter convencional da ortografia, ela tem possibilidade de integrar alterações que correspondem a mudanças da língua provocadas pelo uso. Evidentemente, não se trata de transmitir a intervalos breves as alterações que se manifestam na oralidade e por isso a ortografia mantém sempre um caráter conservador. Quando as entidades próprias consideram que existem suficientes razões para se alterarem certos aspetos obsoletos de uma ortografia, a mudança deve ser transmitida na escola e na documentação oficial, e passar a integrar a norma. Na escrita individual, sem caráter oficial ou escolar a ortografia antiga pode ser mantida sem consequências visto que as mudanças não alteram a pronúncia da língua.  

"Sintaxe e semântica são muito descuidadas na 
escola"

Como vê a situação da linguística no ensino da língua e que soluções propõe para termos uma sociedade mais “atraída” para as questões da língua?

Ao contrário do que se julga, as pessoas são atraídas pelas questões da língua, e preocupam-se sobretudo com as pronúncias “corretas” e com as normas de dialetos ou de variedades, exercendo sempre juízos de valor e até julgamentos morais. O que afasta as pessoas é a coincidência entre o estudo da língua e os estudos teóricos ou científicos, ou até simplesmente gramaticais, desligados da aplicação prática. Há poucos estudos sobre as infrações na sintaxe ou na semântica que sirvam para demonstrar que essas infrações têm consequências graves, perigosas ou simplesmente risíveis. E no entanto, essas áreas são muito descuidadas na escola em benefício dos “erros ortográficos” porque estes são o que mais facilmente se pode corrigir sem possibilidade de discussão.


Maria Helena Mateus escreveu recentemente um artigo sobre o Acordo Ortográfico no jornal Público. Podem lê-lo aqui.

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