quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Estratégia cortadora

Foto de little phoenix (Flickr)
Eis um dos erros mais comuns da língua portuguesa. Literalmente, não há ninguém que nunca o tenha cometido. É um erro que surge fruto da crescente importância da linguagem coloquial e que aparece sobretudo no discurso oral, embora também seja muito fácil de encontrar em registo escrito.

Nunca ouviram qualquer coisa como "É o que eu gosto!"? A maioria deve estar a pensar: não só já ouvi como também digo. Muitos pensarão também que a frase não tem problema algum.
Pois, mentira. Isto é aquilo a que se chama uma frase agramatical. O que, resumidamente, significa que está errada.

Vamos lá explicar. Comecemos pelo verbo "gostar". O verbo "gostar" pertence ao grupo de verbos mencionados, por exemplo, na Gramática da Língua Portuguesa (2003) ou por Cunha e Cintra (1984) como "transitivos directos". Significa isto que é um verbo que seleciona "um argumento externo e um argumento interno preposicional". Ora bem, o argumento externo é aquele que fica de fora do predicado - o sujeito; o argumento interno é o que faz parte desse predicado; o facto de ser preposicional fala por si: este argumento interno só pode surgir introduzido por uma preposição.
No caso do verbo gostar é a preposição "de". Parece bastante óbvio, não? Afinal de contas, nenhum de nós tem qualquer dificuldade em dizer "eu gosto de alguma coisa".

Mas quando a ordem dos argumentos é distinta, aí costumam vir os problemas. Na verdade, quando temos frases do tipo "é o que eu gosto" - que é uma frase relativa -, estamos a utilizar o verbo "gostar". E a preposição obrigatória, onde está? Pois, alguém a cortou. A isto os linguistas chamam, então, de estratégia cortadora.

É fácil fazê-lo no discurso oral. Mas ao escrever, cortar elementos obrigatórios têm consequências, pois podem afectar a leitura ou deixar o leitor com dúvidas relativamente ao que está a ler. Portanto, se o verbo selecionar um argumento que seja introduzido por uma preposição, nunca a omitam, independentemente da estrutura frásica. É disso que eu gosto; é do que eu gosto; é de chocolate que eu gosto, etc.

Nunca diriam "eu gosto chocolate", pois não? Então não usem a estratégia cortadora, pelo menos quando escrevem. É um bom exercício :)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Houveram muitos erros...

Há qualquer coisa neste título que vos soa mal? Ainda bem, porque o uso incorreto do verbo "haver" é dos mais comuns da língua portuguesa.

O falante sabe que, ao conjugar um verbo, pode fazê-lo com os vários pronomes pessoais: eu, tu, ele, nós, vós, eles. Os últimos três, como sabem, estão no plural. Significa que o português permite a uma diferenciação de número ao conjugar verbos. E portanto, quando o referente do verbo "haver" está no plural, "houveram", pois claro.

Para quem comete esse erro, um exercício: e fazer isso no tempo presente? Não conseguem, pois não? Pois, porque, na esfera do presente, o verbo "haver" tem apenas uma forma: "há". E não podem dizer "eu há" ou "tu há", pois não? Claro que não.
Porque o verbo haver é um verbo impessoal, não tem pessoa (pronome pessoal) nem tem número (singular ou plural).

Muitas pessoas acham que este é um erro óbvio, embora haja ainda muitos que o cometem (haja, verbo "haver" no conjuntivo, sem pessoa e sem número, vêem?). Mas quando nos deparamos com perífrases verbais, isto é, com formas verbais constituídas por mais do que um verbo, a coisa começa a complicar. É tão, mas tão comum cometer erros neste tipo de estruturas que até os podemos encontrar muitos frequentemente em meios de comunicação social.

Nunca viram frases do tipo "vão haver mais pessoas no desemprego"? Afinal, "vão" é uma forma do verbo "ir", que se conjuga perfeitamente com número e que, por isso, tem formas plurais. Pois, mas "vão" está aqui como auxiliar do verbo principal; e o verbo principal é, novamente, o verbo "haver". E, portanto, o auxiliar nunca pode ser conjugado no plural, pois o verbo principal é impessoal. Assim sendo, "vai haver mais pessoas no desemprego."
Não compliquem: se o verbo "haver" está por lá, o plural não pode estar.

"Houveram muitos erros", mas a partir de agora não vai haver mais, pois não?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Toma lá gramática

Vamos começar por falar de pontuação. Quando pensei neste título para apresentar este blog, percebi que poderia ser ambíguo.

Afinal, tanto posso querer dizer que vos estou a atirar uma gramática à cabeça; ou que estou a dirigir-me a uma gramática e a dizer "toma lá!"; ou ainda que estou a anunciar aos leitores de que gramática é o tópico em questão.

Mas... será que é mesmo assim? Na verdade, não é. Uma destas três hipóteses não é viável. E a razão é... a pontuação. Se eu me quiser dirigir a alguém com uma frase como "toma lá", separo a frase do seu destinatário (neste caso, "gramática") por uma simples vírgula. Esta é uma dúvida que muita gente tem: pôr vírgula ou não? Quando usar? Muitos tentam à sorte.

O problema é que, como vêem, uma simples vírgula pode mudar o sentido de uma frase. Querem outro exemplo? Há um, muito famoso, que circula pela web há uns tempos, e que é mais simples do que o do título. Ora vejam: "Vamos jantar avó." Ou "Vamos jantar, avó." 


Vêem a diferença? Na primeira frase, a única interpretação possível é a de que a avó vai ser a ementa do jantar. Na segunda, estamos a chamar a avó para que venha jantar.


Portanto, tenham cuidado quando escrevem, porque podem estar a escrever algo com um sentido diferente ao que pretendem. E eu, a partir de agora, estarei por cá para ajudar. Com dúvidas sobre pontuação e sobre muitas das partidas que a gramática nos prega de vez em quando.


Assim sendo, bem-vindos e tomem lá gramática!