domingo, 28 de fevereiro de 2016

A, ante, após, até... A regência das preposições

Para finalizar a semana dos verbos, vamos cruzá-los com um outro tema: as preposições. Lembram-se das preposições, que em crianças éramos obrigados a saber de cor?

a, ante, após, até, com, contra, de, desde, durante, em, entre, para, perante, por, salvo, sem, sob, sobre, trás.*

Deixadas muitas vezes para o nosso subconsciente e para o nosso conhecimento interiorizado da língua, as preposições - e as locuções prepositivas, que são muitas mais do que as acima apresentadas - são uma categoria gramatical fundamental, na medida em que exprimem relações entre partes interdependentes de uma oração.

Normalmente, e dada a sua natureza relacional, só em casos raros é que as preposições surgem isoladas: tipicamente são seguidas de um nome ou de uma frase/oração.

- Fui a Paris (nome).
- Preciso de cortar o cabelo (frase).

Como é evidente, não serve este texto para explicar tudo o que há para saber sobre preposições. Pelo contrário, vamos cingir-nos àquelas que estão sempre associadas ao tema da semana, os verbos.

Numa frase, a maioria dos verbos surge obrigatoriamente associado a certas funções sintáticas (como por exemplo, o sujeito, o objeto direto, o objeto indireto, etc). Por isso, deles se diz que têm uma estrutura argumental.

Alguns verbos têm apenas um argumento, o sujeito (nascer) - quando o único argumento é o sujeito, chama-se argumento externo, porque se situa fora do predicado. Há muitos verbos com dois argumentos, o sujeito e o objeto direto (comer). Outros têm três, o sujeito, o objeto direto e o indireto (dar). Nestes dois casos, os argumentos objeto direto e indireto são internos ao verbo, pois fazem parte do predicado.

- O menino nasceu.
- O Pedro comeu bolachas.
- O Rui deu um livro à Ana.

É aqui que surge o fenómeno linguístico que interessa a este artigo: certos verbos "exigem" que os seus argumentos sejam iniciados por preposições. Nos exemplos acima encontramos logo um desses casos.

- O Rui deu um livro à Ana (contração do artigo a com a preposição a).

Acontece que existem verbos que selecionam o chamado complemento oblíquo, que é obrigatoriamente iniciado por uma preposição em particular. É o caso dos verbo gostar (de), depender (de), conversar (com), morar (em).

- A Maria gosta de chocolate.
- A empresa depende de créditos.
- O professor conversou com os alunos.
- Ele mora no Porto.

Um outro caso clássico de regência de preposições: os chamados verbos de movimento, que podem selecionar uma de várias preposições.

- Eu quero ir em direção ao mar. (locução prepositiva)
- Eles vão para Lisboa.
- Nós vamos até ao Porto.

Não existe nenhuma regra por detrás da regência das preposições. Trata-se apenas de uma propriedade lexical de base dos próprios verbos - e que nada tem que ver com a própria sintaxe da frase.

É precisamente a questão da regência das preposições que leva a erros como a estratégia cortadora em frases em que os constituintes não estão na sua "ordem natural", como já referimos neste blog.


* A lista apresentada é constituída pelas chamadas preposições simples do português, segundo a Gramática da Língua Portuguesa (2003). Chame-se, no entanto, a atenção para outras palavras com "caráter relacional" "indiscutível", referidas por Cunha e Cintra (1984), como afora, conforme, consoante, durante, exceto, fora, mediante, menos, não obstante, salvo, segundo, senão, tirante, visto.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

E se nós ensináSSEMOS a conjugar os verbos?

Retomamos o tema da semana - os verbos - para explicar um pouco mais sobre os tempos verbais. No post anterior, referimos os modos e as modalidades a que se associam. Hoje, vamos aprofundar a questão da conjugação verbal e endereçar um erro grave, mas infelizmente comum na escrita.

Ao contrário de outras línguas, como o inglês, o português tem conjugações variáveis por pessoa e número, normalmente esquematizado no tradicional eu/tu/ele/nós/vós/eles - há, portanto, três pessoas no singular e outras três no plural. 

Além disso, convém não esquecer que, do ponto de vista da conjugação, os verbos se dividem em regulares e irregulares. As alterações de conjugação verbal, em verbos regulares, consistem numa diferente terminação da forma verbal. A raiz do verbo, por assim dizer, fica igual. 

Assim, com verbos terminados em -ar, no Presente do Indicativo, por exemplo, a forma verbal acaba em o/as/a/amos/ais/am; com verbos terminados em -er, a forma verbal acaba em o/es/e/emos/eis/em; e com verbos terminados em -ir, acabam em o/es/e/imos/is/em

Imagem: alunosonline.com.uol.br

E podemos continuar a lista por aí fora, com os demais tempos verbais do Indicativo (a saber, o Pretérito Perfeito Simples - eu cantei; eu comi; eu parti -; o Pretérito Imperfeito - eu cantava, eu comia, eu partia; o Futuro - eu cantarei, eu comerei, eu partirei, etc.).

O Conjuntivo

Tirando algumas exceções - como a segunda pessoa do plural (vós), que está cada vez mais em desuso e que leva a que muitos falantes não a saibam conjugar - o problema da conjugação não está no modo Indicativo, mas sim no Conjuntivo. 

Tal como todas as línguas do mundo, também o português tem palavras homófonas. E quando essas palavras são graficamente representadas, através da escrita, surge muitas vezes confusão, sobretudo em falantes com menor nível de escolaridade. 

Como vimos no post anterior, o Conjuntivo surge, tipicamente, em construções associadas à expressão de dúvida, de possibilidade ou de incerteza. Por exemplo, em frases condicionais, iniciadas por "se". Há três tipos de frases condicionais: a primeira, em que se usa o Presente do Conjuntivo, a segunda, em que usa o Imperfeito do Conjuntivo, e uma terceira, em que se usa um tempo composto, que não vamos por agora analisar. Caso não se lembrem destas coisas, porque são matéria dada ainda no ensino primário e que nunca mais é retomada, talvez se recordem das If Clauses (Type I, II e III) das aulas de inglês, dadas bem mais tarde. O valor semântico de cada uma delas, neste momento, não interessa. Importa, isso sim, conjugar bem cada tempo verbal:


Imagens: alunosonline.com.uol.br

Resumindo o que está na primeira tabela, no Presente do Conjuntivo (Subjuntivo para falantes do português do Brasil), conjuga-se com e/es/e/emos/eis/em em verbos terminados em -ar; a/as/a/amos/ais/am em verbos terminados em -er; e a/as/a/amos/ais/am em verbos terminados em -ir.

Foquemo-nos agora no Imperfeito do Indicativo, que é o que causa a maioria das asneiras. 

- Se eu vendesse casas, teria imenso sucesso. 

Esta é uma frase condicional com Imperfeito do Conjuntivo, na primeira pessoa do plural. Infelizmente, vendesse soa parecido a vende-se (embora nem sequer sejam exatamente homófonas, por causa da acentuação - o verbo no Imperfeito do Conjuntivo lê-se como se fosse "vendêsse"). Mas quantas e quantas vezes já não encontrámos disparates do tipo se eu vende-se ou se eu canta-se e por aí fora? Pois. Vende-se ou canta-se são verbos que estão no Presente do Indicativo - têm, por isso, valores semânticos e usos completamente diferentes e escrevem-se assim porque têm um clítico em posição de ênclise - um fenómeno que este blog também já explicou

Esta é uma das consequências de um certo abandono das questões linguísticas mais básicas no ensino, à medida que este avança, e só prova que a linguística nunca devia deixar de fazer parte dos programas de educação da língua materna - da mesma forma como nunca deixa de fazer parte nos programas de língua estrangeira. 


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Modalidade, modo, verbo

Foto: clker.com
Esta semana falamos de verbos. Os verbos são um mundo vasto nas línguas. Hoje, explico-vos os diversos modos verbais.

Em primeiro lugar, quando temos um verbo numa frase, temos de atentar ao seu modo. E o que é isto? Segundo a Gramática da Língua Portuguesa de Mateus et alii (2003), o modo é aquilo que permite ao verbo expressar vários tipos de modalidade. Existem, fundamentalmente, quatro tipos de modalidade:

- interna ao participante: relacionada com a "capacidade e necessidade";
- externa ao participante: relacionada com "as circunstâncias externas" que rodeiam o participante;
- deôntica: relacionada com a ordem e o dever;
- epistémica: relacionada com a possibilidade, a dúvida e a incerteza.

Quanto a modos, existem, fundamentalmente, três: o Imperativo, o Conjuntivo e o Indicativo. Destes já ouviram falar, certo? Então, o Imperativo está relacionado com a ordem, pelo que expressa sobretudo uma modalidade deôntica.

O Conjuntivo e o Indicativo, de que vamos falar hoje, são um pouco mais difíceis de distinguir, pois podem "associar-se" a "mais do que uma modalidade". De qualquer modo, o Conjuntivo surge mais relacionado com a dúvida e a incerteza (modalidade epistémica). O modo Indicativo expressa mais facilmente certeza ou, simplesmente, situações em que se "afirma a veracidade de uma proposição" (Gramática da Língua Portuguesa, 2003) - no fundo, factos. É claro que a questão é bastante mais complexa, mas aqui tentamos simplificar.

Assim sendo, o Indicativo é o modo mais comum, sobretudo em frases simples. Em frases complexas, o Indicativo também surge na "maior parte das orações coordenadas" (frases com "e" ou "mas", por exemplo); e ainda na frase matriz ou oração principal da frase complexa. Já o Conjuntivo surge mais vezes em frases complexas subordinadas (em que há uma frase matriz, que pode ou não selecionar obrigatoriamente uma oração com Conjuntivo).

Quando nos ensinavam a distinguir os dois modos (ainda na escola primária), havia o hábito de dizer que, quando aparecia a conjunção integrante "que" numa frase (atente-se que o "que" nem sempre é uma conjunção integrante), a seguir teria de vir o Conjuntivo. Mas não é assim. Na verdade, o modo é escolhido com base naquilo que pretendemos exprimir.

Por exemplo, em frases complexas que expressam valores como "dúvida, volição, necessidade, possibilidade, obrigação, permissão", etc.,  o Conjuntivo é obrigatório:

- A Maria espera (Ind.) que o Rui chegue (Conj.) a horas.*

Já quando exprimimos "conhecimento ou crença", o Indicativo é mais frequente, mesmo na segunda oração.

- A Maria sabe (Ind.) que o Jorge está (Ind.) doente.*

Neste grupo há, no entanto, alguns verbos que admitem os dois modos na segunda oração.

- Ele calcula (Ind.) que os amigos estão (Ind.) em casa / estejam (Conj.) em casa.*

Por hoje é tudo. O próximo post será sobre a conjugação verbal, que está intimamente relacionada com o modo, e que traz muitos problemas - sobretudo quando há pronomes metidos ao barulho.

* Todos os exemplos foram retirados da Gramática da Língua Portuguesa, de 2003.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Entrevista a Ana Maria Brito: "Jovens não tiram proveito dos recursos da língua"

Ana Maria Brito é professora catedrática na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e coautora da Gramática da Língua Portuguesa (2003) e é a primeira convidada do Estudar a Língua para iniciar um ciclo de entrevistas que o Estudar a Língua vai fazer a diversos especialistas da língua portuguesa. Nesta entrevista, falamos das diversas variedades do português e ainda abordamos a importância da sintaxe, área de especialização da autora. 

Fala-se muito nas diferenças entre o português do Brasil e o português europeu. Pode apontar as principais?
A maior variação é no sistema fonológico, naquilo que se chama vulgarmente a “pronúncia”. O sistema vocálico é mais reduzido e mais aberto. No plano lexical há também diferenças que têm a ver quer com novas palavras (muitos empréstimos de origem inglesa entraram facilmente na língua (”xerox”, fotocópia) quer com as mesmas palavras com um sentido novo, como “terno” (fato), “ónibus” (autocarro), “café da manhã” (pequeno almoço), quer com empréstimos de origem tupi (“abacaxi”) e africana (“sanzala”).   
Do ponto de vista morfossintático e sintático, uma das principais diferenças face ao PE relaciona-se com o sistema pronominal e com a concordância sujeito – verbo e com a flexão verbal. À parte uma zona no Sul que conserva ainda o “tu” como forma de tratamento do interlocutor, o PB usa predominantemente “você” e “vocês”, levando o verbo a tomar formas de terceira pessoa do singular e do plural: “você sabe…” “vocês sabiam…”. Também “nós” é muitas vezes substituído por “a gente”, igualmente justificando uma forma de 3ª pessoa do singular (“a gente sabe”). Como resultado, os paradigmas verbais são mais reduzidos do que no PE. Claro que, como o país é extenso e complexo, existe enorme variação quer do ponto de vista dialectal quer e principalmente do ponto de vista social; por isso, quando falamos em variação em relação ao PE, estamos a falar sobretudo de um PB vernáculo e oral, das classes mais desfavorecidas, que coexiste com um PB culto, que é o das classes escolarizadas e socialmente mais elevadas.
Outras diferenças dignas de nota: a diferente colocação dos pronomes átonos ou clíticos, com predomínio da próclise (“me diga uma coisa”); o uso de formas fortes dos pronomes em vez de formas átonas, como em “eu vi ele” em vez de “eu vi-o”; a produtividade do gerúndio nas formas progressivas (“estou vendo”), o uso de “ter” como verbo existencial (“tem gente aqui….”), o uso de formas possessivas isoladas, sem artigo definido, como em “minha carteira”, em vez de “a minha carteira”; também a redução na concordância nas expressões nominais é digna de nota: é frequente ouvir-se “os menino”, em que a marca de plural está reduzida ao artigo e não surge no nome.  
                                     
Muitos falantes nativos de português do Brasil “queixam-se” de perceberem mal o português europeu. Isto tem que ver com uma diferente evolução da língua nos dois países?
Sim, claro; por várias razões que estão relacionadas com a forma como a língua portuguesa foi deslocada para o Brasil, com o contacto de línguas a que o Português foi exposto na colonização (quer com línguas índias quer com línguas africanas, quer mais tarde com línguas de emigrantes de várias nacionalidades, italianos, alemães, árabes, etc), o sistema fonológico foi muito alterado e uma das principais é a maior abertura das vogais e o desaparecimento de uma regra muito importante no PE que é a do vocalismo átono. No PE uma vogal não acentuada é fechada como em “morar”, pronunciada como “murar”; ora no Brasil a pronúncia é com o “o” semiaberto: “morar”. Por isso os falantes do PB por vezes não entendem muito bem falantes do PE, porque vão ouvir mutas vogais fechadas e muitos grupos consonânticos como “pn” (“pneu”) que um PB pronuncia como “peneu”.       

E quanto às restantes variedades do português?
Em África estamos a assistir também à emergência de variedades nacionais, o PM e o PA, em particular, embora ainda não de forma tão estável como o PB. O Português está nesses países em situação de forte contacto de línguas, é língua não materna para grande parte das populações, embora haja grandes diferenças entre cidade / campo, entre jovem / idoso, entre falante escolarizado / não escolarizado, mesmo entre homem / mulher. Os recenseamentos realizados nesses países mostram dados mais ou menos seguros sobre tudo isso e revelam também que o Português está a aumentar o número de falantes como L2, sendo claramente uma língua de prestígio.
Mas o Português está a mudar nesses países: além da parte vocabular, com muitos empréstimos das línguas Bantu e da parte fonológica, há também algumas diferenças morfossintáticas e sintáticas. No PA por exemplo, a construção ditransitiva tende a ser realizada com a preposição “em”: “dar na mãe uma prenda”; no PM, tal construção tende a perder a preposição: “dar a mãe uma prenda”. Em ambos os países nota-se um predomínio da preposição “em” usada mesmo com verbos de movimento e de deslocação: “chegar no mercado”, em vez de “chegar ao mercado”. No PM, está já registado e estudado um fenómeno de “dequeísmo” e paraquísmo” nas orações integrantes: “ eu vi de que ele chegou tarde”; “eu disse para que ele visse”. 
Dada a situação de relativa instabilidade do Português em Angola e Moçambique é portanto de prever que mudanças continuem a operar na língua.  

Centremo-nos no português de Portugal. Existe alguma diferença gramatical profunda entre dialectos?
Portugal é um país bastante uniforme do ponto de vista da gramática da língua, que se relaciona com o facto de a língua se ter estabilizado há mais de oito séculos num território pequeno e que mantém as suas fronteiras. Mas há variação dialectal forte mais uma vez no plano fonético e fonológico, existindo os chamados dialectos setentrionais e os centro-meridionais, além dos dialectos insulares. No plano morfossintático e sintático existem alguns fenómenos interessantes, sobretudo quando estão em jogo falantes mais idosos, menos escolarizados e mais afastados dos centros urbanos: assim, há que registar o uso do gerúndio no Alentejo e Algarve nas construções progressivas (“estou vendo”) o uso de “ter” existencial, curiosamente dois fenómenos que reencontramos no PB; no Alentejo pode ainda hoje ouvir-se por falantes mais velhos e menos escolarizados um gerúndio flexionado (“em (tu) estandes pronto”….).        

"Há que dar mais atenção à parte gramatical no ensino"

É sintaticista. O que pode dizer a um leigo sobre a preponderância da sintaxe para o uso correcto da língua?
A sintaxe é a base da gramática, é o “esqueleto” da língua… São as regras sintáticas que orientam a formação de frases simples e complexas, no que respeita à ordem de palavras, à concordância, à selecção entre palavras, às relações anafóricas, etc. Por isso, um bom domínio da sintaxe da língua é essencial para falar e escrever bem, com clareza e objetividade, para argumentar no discurso, para convencer o nosso interlocutor acerca de determinada ideia ou conteúdo.
Embora eu não seja pessimista no que respeita ao uso da língua pelas jovens gerações e veja com bons olhos o acesso que grande parte da população tem em relação à língua e às suas manifestações, quer pelo acesso à televisão, à rádio e principalmente às novas tecnologias de informação, não há dúvida de que muitos dos nossos jovens usam por vezes uma sintaxe pobre nas suas produções linguísticas e não tiram proveito dos inúmeros recursos da gramática da língua portuguesa. Há que dar mais atenção à parte gramatical e sintática da língua no ensino e não abandonar a reflexão gramatical nos níveis mais avançados, como se faz atualmnete no ensino secundário, no pressuposto de que os alunos já sabem o essencial de gramática. Isso não é verdade, por variadíssimas razões, e por isso sou a favor de um ensino de Português que dê grande espaço à reflexão gramatical.     

  

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Por que razão escrever isto? Porque sim.

Estão a ver algo de peculiar no título? Alguns acharão que está tudo normal, mas a maioria talvez estranhe. Afinal de contas, estão duas palavras iguais, ou quase, escritas de forma diferente. 


Foto: Flickr
Acontece que está certo! Mas vamos por partes. Porque é um conetor. De uma forma muito resumida, um conetor é um elemento linguístico que pode ter diversas naturezas morfológicas (pode ser um adverbial ou uma preposição, ou ambos), e que faz, como o nome indica, a conexão entre orações da frase ou entre frases.

Essa conexão pode ter diferentes valores semânticos: podem ser de mera listagem (e, além disso, em primeiro lugar), de contraste (mas, pelo contrário, contudo), etc. - atenção, os exemplos que acabo de citar não esgotam, nem por sombras, todos os conetores (nem todos os tipos de conetores) que existem em português! Os valores semânticos que aqui nos interessam são os de causa/consequência e os de razão/motivo (terminologia da Gramática da Língua Portuguesa de Mateus et alii, 2003). 

Ambos surgem em orações causais. Veja-se:

- Há neve na serra, porque tem estado muito frio. (causa)
- O Pedro foi à serra, porque há neve. (motivo)

Ora, até aqui é tudo relativamente simples. A coisa começa a complicar quando surgem frases interrogativas. Como não podia deixar de ser, há diversos tipos de interrogativas. 

Vamos começar pelas chamadas interrogativas parciais. Trata-se de frases que são marcadas por aquilo que a Gramática da Língua Portuguesa (2003) chama de "constituintes interrogativos", também apelidados de pronomes ou de advérbios interrogativos, entre outras denominações. Porque, onde, como ou quando são alguns exemplos de advérbios interrogativos. Acima referi que os conetores podem ter uma natureza adverbial. Este é o mesmo caso, mas aplicado a interrogativas. 

O Ciberdúvidas da Língua Portuguesa dá uma explicação, que eu pretendo aqui clarificar. Diz o portal que o advérbio interrogativo surge "ligado ao verbo" em orações interrogativas diretas. Mas o importante não é estar ligado ao verbo - na verdade, todos estes constituintes estão sempre ligados ao verbo. Importa referir que quando se procura focalizar a causa, usa-se porque como advérbio interrogativo. Assim sendo, se eu quiser transformar o exemplo que usei acima numa frase interrogativa, ficaria:

- Porque há neve na serra? [Porque tem estado muito frio]. 

Por outro lado, nem só de advérbios/pronomes interrogativos se constituem as frases interrogativas. Pode haver constituintes que são iniciados por uma preposição. Exemplos: com quem falaste?, ou de quem gostas?; e, aqui sim, temos por que - sozinho ou seguido dos nomes razão ou motivo. No fundo, por que - separado - equivale a por qual (razão ou motivo). Neste caso, por é uma preposição e apenas o que é que é o pronome interrogativo. 

Assim, quando o valor semântico é o de motivo, o mais provável é encontramos o morfema por que e não porque.

Do mesmo modo, quando temos frases declarativas em que explicamos o motivo ou razão de alguma coisa, também usamos o morfema separado por que. Há um teste simples. Se substituirmos por pelo(a) qual e continuar bem, usamos por que. Por exemplo:

- A razão por que mudei de casa foi o meu novo emprego.  

Nota: porquê (acentuado) escreve-se sempre tudo junto.







quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A posição e a forma dos clíticos, explicá-los-emos como deve ser!

Hoje vamos continuar com o tema dos clíticos. Na semana passada disse-vos que o pronome átono, ou clítico, pode estar antes ou depois do verbo.

Na verdade, não vos contei tudo. O clítico pode também encontrar-se no "interior" do item lexical de que depende. Quando isso acontece, temos um caso de mesóclise (Gramática da Língua Portuguesa, 2003, de Mateus et alii).

A mesóclise só surge, contudo, quando as formas verbais estão no futuro ou no condicional. Ora vamos lá exemplificar. Quantas vezes já não ouviram coisas do tipo:

- *Esses brinquedos venderiam-se na loja.
- *Eu darei-lhe um presente no aniversário.

Disparate. Disparate. Se estas duas frases estivessem no Presente do Indicativo, por exemplo, estariam bem com a estrutura apresentada (de ênclise). Vejamos:

- Esses brinquedos vendem-se na loja.
- Eu dou-lhe um presente no aniversário.

Mas quando temos um tempo futuro ou um condicional, temos de, no fundo, partir o verbo em dois: para um lado, a raiz do verbo (vender ou dar); para o outro, a conjugação conforme a pessoa e o tempo verbal (iam ou ei, por exemplo). E no meio, com hifenização, colocamos o clítico.

- Esses brinquedos vender-se-iam na loja.
- Eu dar-lhe-ia um brinquedo no aniversário.

Os nomes (próclise, ênclise, mesóclise) podem assustar, mas na verdade não é assim tão difícil, pois não? Façamos um breve resumo: em português europeu, a tendência é para termos ênclise, ou seja, o clítico vem depois do verbo. Certos fenómenos, como escrevi no post anterior, "forçam" a mudança do clítico para uma posição antes do verbo, ou seja, em próclise. Se tivermos o verbo no futuro ou no condicional, temos sempre mesóclise: o verbo "separa-se" e o clítico vem no meio, entre hífens.

Antes de passarmos à próxima questão, deixo-vos apenas uma curiosidade, que a Gramática da Língua Portuguesa refere: a mesóclise é um dos "traços de uma gramática antiga", que o português moderno mantém ainda hoje. Como essa gramática antiga está em "claro desaparecimento", já há alguns exemplos de variações entre ênclise e mesóclise, sobretudo com formas verbais irregulares. Mas estas variações, refere a Gramática, provêm sobretudo das gerações mais novas ou falantes de "variedades populares" do português.

Por isso, e a bem da correcção e do bom português, usem a mesóclise e ensinem-na aos vossos filhos!


Tu comes-i-o, tu come-o, tu come-lo.

E quando o clítico em ênclise soa mal, muito mal, como em dois dos casos referidos no subtítulo acima? Vamos por partes. No subtítulo uso o verbo comer, no Presente do Indicativo, na segunda pessoa. Ora como se conjuga o verbo comer?

- Eu como, tu comes, ele come, etc.

Se juntarmos um objeto direto ao verbo comer, imaginemos, um bolo, dizemos: tu comes um bolo. E se, em vez de um bolo, estiver um clítico em posição normal de ênclise? À partida, a regra manda que se hifenize, simplesmente, os pronomes o/a/os/as, ao verbo conjugado no tempo e na pessoa certos. O que dá qualquer coisa como *tu comes-o. E como isto soa tão mal que qualquer pessoa estranha, há quem junte ali um i e se saia com um *tu comes-i-o. O que, obviamente, também não pode ser.

Então, o que se faz? Uma vez mais, a Gramática da Língua Portuguesa explica muito bem: "quando a forma verbal termina em /s/ ou /r/", dá-se o "desaparecimento destes elementos" e o clítico "assume a forma lo(s)/la(s). Neste caso, com o verbo comer, que na segunda pessoa termina em /s/, o /s/ cai e o clítico passa a lo: tu come-lo.

Com um verbo como fazer, cai toda a última sílaba: tu fazes um bolo passa a tu fá-lo (e não tu fazes-lo). Diz ainda a Gramática: "quando a forma verbal termina em nasal" - ou seja, em /m/ ou /n/ -, o clítico assume as formas no(s)/na(s). Ou seja:

- O João tem um martelo.
- O João tem-no. (e não *tem-lo)

E se agora juntarmos os dois tópicos deste post? Isto é, se juntarmos a mesóclise a esta regra de formação de formas verbais com clíticos? Vejamos como é:

- O João construirá uma casa (acaba em /r/).
- O João construi-la-á. (cai o /r/, separa-se o verbo e o clítico ganha a forma /la/)
- O Rui fará um exame amanhã.
- O Rui fa-lo-á.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Vou contar-vos uma história. Ou será que vou-vos contar uma história?

"Qual é a frase correta? Devia-te ter contado tudo ou devia ter-te contado tudo?" Há uns tempos fizeram-me esta pergunta. Confesso que me fez pensar. Afinal de contas, a linguística consiste no estudo da língua que é falada pelos falantes, isto é, que está em uso. E afinal, acho que todos nós usamos as duas situações aqui e ali.

Bem, vamos a algumas definições, para tentar compreender isto: àquela particulazinha (o "-te") dá-se o nome de pronome átono ou, simplesmente, clítico. Os clíticos têm apenas uma sílaba, não têm acentuação própria e "ocorrem associados à posição dos complementos dos verbos". E, conforme as formas verbais, podem surgir em várias posições na frase, na medida em que as línguas naturais têm os chamados "desencadeadores de colocação dos pronomes" (Gramática da Língua Portuguesa, Mateus et alii, 2003). 

Antes de mais, é preciso lembrar que a posição dos clíticos varia conforme a variante da língua portuguesa. Por exemplo:
  • "A menina levantou-se" - o clítico encontra-se depois do verbo em português europeu.
  • "A menina se levantou" - em português brasileiro, surge antes do verbo.
Normalmente, referimo-nos a estas duas posições:

1. Quando o clítico está antes do verbo, temos próclise.
2. Se o clítico estiver depois do verbo, há ênclise.

Até aqui, tudo fácil, não é? Infelizmente, em linguística há sempre uma exceção, ou uma data de regras, ou uma série de construções frásicas, que decidem dificultar-nos a vida. Como gostam de dizer os linguistas, "quando há ciência, tudo tem de ser explicado"!

Assim sendo, foquemo-nos em construções com verbos auxiliares (do tipo "devia ter contado", como o nosso exemplo de partida). Quando há construções deste tipo, os clíticos nunca se associam ao verbo principal (nunca poderemos ter uma frase do tipo *"devia ter contado-te"), estando o verbo principal no particípio. Pelo contrário, associam-se ao auxiliar mais perto do verbo principal. Isto é, num exemplo como este, em que há dois auxiliares (dever e ter), o clítico surge, preferencialmente, acoplado ao verbo auxiliar "ter", que é o que está mais próximo do verbo principal. Daí que a opção mais correta, de um ponto de vista gramatical, seja "devia ter-te contado tudo".

Mas "devia-te ter contado tudo" não soa assim tão mal, pois não? Pois não. Mais uma vez, as gramáticas têm resposta. Existe um fenómeno linguístico chamado subida do clítico. Como vimos, numa frase simples, o clítico situa-se em posição de ênclise junto do verbo principal em português europeu - ou em posição proclítica em português do Brasil. Com um auxiliar, o clítico "sobe" para uma posição adjacente a esse auxiliar. Numa frase, como a do exemplo, com dois auxiliares, não é agramatical usarmos o clítico junto do primeiro auxiliar. Cenários como este são possíveis com verbos auxiliares do tipo começar, estar, dever, poder, etc. 

Se o verbo principal estiver no infinitivo, o clítico oscila muito mais entre a associação ao auxiliar ou ao verbo principal ("vou contar-vos uma história" ou "vou-vos contar uma história"). 

Os desencadeadores

Até aqui, percebemos como funciona o posicionamento dos clíticos em frases simples e com verbos auxiliares. Percebemos também que, em português europeu, a ênclise é preferencial. Mas como escrevi logo no início, esse posicionamento pode estar dependente de desencadeadores, que forçam a existência de próclise, ou seja, que "obrigam" o clítico a mudar-se para uma posição anterior ao verbo a que está acoplado. 

São alguns desses desencadeadores a negação, algumas interrogativas, a subordinação, as frases relativas e certos advérbios como , mesmo, apenas, entre outros. Exemplos:

  • Não o vi.
  • Quem o viu?
  • Ele disse que o viu. 
  • O livro que te dei ontem é bom.
  • Só ele o viu. 

Nota extra:

- Em português, sobretudo num registo oral, é muito comum fazer aquilo a que a Gramática da Língua Portuguesa chama de "redobro do clítico". Nem sempre é gramatical, mas há algumas construções em que é aceite. O que acontece com o clítico é que, apesar da sua natureza de complemento verbal, nem sempre surge na posição onde o complemento verbal normalmente está. E a língua permite que essa posição vazia seja preenchida pelo complemento verbal que o pronome representa. É o caso de:
  • Ele deu-me a mim as flores.
  • Nós conhecemo-nos a nós próprios.
Isto do redobro do clítico é bem mais complicado do que esta breve explicação, mas vou ficar-me por aqui, para não dificultar demasiado. 

Para vários exemplos e mais definições sobre pronomes átonos em português europeu, vejam aqui.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Não, a gente não vamos...

Hoje trago-vos um assunto bem mais problemático do que possa parecer: a concordância entre o sujeito e o verbo. Todos se lembram do que é o sujeito, certo? O sujeito é o argumento da frase que, no fundo, tem a "função de tópico da frase" e é ele que "desencadeia a concordância verbal" (Gramática da Língua Portuguesa de Mateus et alii, 2003). Quer isto dizer que o sujeito obriga o verbo a concordar com ele em pessoa e em número. 

Então, quando dizemos "O João comeu a maçã", o sujeito é "O João" - em jeito de curiosidade, deixem-me dizer-vos que esta é a frase-padrão para qualquer linguista que queira explicar algum fenómeno básico em frases simples. 

Parece simples, mas há sujeitos (gramaticais) que gostam de complicar e que têm a mania de nos confundir. Numa frase declarativa simples, o sujeito da frase é normalmente constituído por um sintagma (essencialmente, um grupo de palavras) em que o núcleo é um nome - atenção, o sujeito não é constituído obrigatoriamente apenas por um sintagma nominal. 

Reparem no título: o sujeito da frase é "a gente". Ora vejamos algumas das coisas que diz o dicionário Priberam sobre o nome "gente".


1. Conjunto indeterminado de pessoas.
2. Conjunto dos habitantes de um territóriopaís. = POPULAÇÃOPOVO


"gente", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/DLPO/gente [consultado em 02-02-2016].

Sublinhe-se: conjunto! A gente é um sintagma nominal composto por uma palavra no singular mas que tem um sentido plural. "A gente", na nossa cabeça, constitui um grupo, um coletivo. E, portanto, há muita gente que faz a concordância com o verbo no plural e que diz coisas do tipo "a gente vamos". Errado! "A gente não vamos" a lado nenhum, porque o sujeito está no singular. Isto tanto é válido para o português europeu como o português do Brasil. "A gente vai". Singular. Sempre. 

Há uma possível explicação para este erro. Como bem sabemos, no Brasil é muito comum utilizar a expressão "a gente" em substituição do pronome pessoal "nós", que é plural. Curiosamente, não me recordo de ouvir um brasileiro a fazer a concordância de forma errada - por isso mesmo, até perguntei a uma falante nativa, que me confirmou que, por terras de Vera Cruz, "a gente vamos" é coisa que não se ouve. Em Portugal, o cenário muda um pouco de figura, sobretudo quando estamos perante um registo oral ou coloquial. 

Então, resumindo, se o sintagma nominal estiver no singular, o verbo também tem de estar, mesmo que, lógica e semanticamente, a frase seja plural. Há que referir que nem todos os gramáticos pensam desta forma. Se a expressão "a gente vamos" é quase unanimemente considerada agramatical, o mesmo não acontece com a expressão "a maioria", que tem um valor semelhante: é um nome que está formalmente no singular mas com sentido plural. 

Há uma diferença. Quando utilizamos "a maioria", normalmente é a maioria de alguma coisa. E essa "alguma coisa" normalmente está no plural - pode até nem estar expressa na frase, mas vamos lá sempre dar pelo contexto. Vejam este título que encontrei na blogosfera: "(...) a maioria dos políticos que vão parar ao poder são umas nódoas...". Isto não parece tão errado como "a gente vamos" porque o plural está ali, à vista de todos. Mas o sujeito não é "os políticos"; é "a maioria dos políticos". E "a maioria" é que é o núcleo do sintagma nominal. 

Na verdade, expressões como "a maioria de", "um grupo de", "uma porção de", são consideradas por Brito (na Gramática da Língua Portuguesa, 2003) como "expressões quantitativas vagas". Se as expressões quantitativas, de natureza nominal, forem precisas, o número da expressão quantitativa é que determina a concordância (exemplo: "um litro de leite custa; dois litros de leite custam). Pelo contrário, como expressões do tipo "a maioria de" são imprecisas, pode pôr-se a hipótese - marginal - de se fazer a concordância com o elemento que é quantificado (na expressão "a maioria dos políticos", o elemento quantificado é "os políticos). 

Mas sublinho: esta hipótese é marginal. Continua a ser sempre preferível fazer a concordância verbal no singular, para que o verbo concorde com o núcleo do sintagma nominal que compõe o sujeito.