quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Vou contar-vos uma história. Ou será que vou-vos contar uma história?

"Qual é a frase correta? Devia-te ter contado tudo ou devia ter-te contado tudo?" Há uns tempos fizeram-me esta pergunta. Confesso que me fez pensar. Afinal de contas, a linguística consiste no estudo da língua que é falada pelos falantes, isto é, que está em uso. E afinal, acho que todos nós usamos as duas situações aqui e ali.

Bem, vamos a algumas definições, para tentar compreender isto: àquela particulazinha (o "-te") dá-se o nome de pronome átono ou, simplesmente, clítico. Os clíticos têm apenas uma sílaba, não têm acentuação própria e "ocorrem associados à posição dos complementos dos verbos". E, conforme as formas verbais, podem surgir em várias posições na frase, na medida em que as línguas naturais têm os chamados "desencadeadores de colocação dos pronomes" (Gramática da Língua Portuguesa, Mateus et alii, 2003). 

Antes de mais, é preciso lembrar que a posição dos clíticos varia conforme a variante da língua portuguesa. Por exemplo:
  • "A menina levantou-se" - o clítico encontra-se depois do verbo em português europeu.
  • "A menina se levantou" - em português brasileiro, surge antes do verbo.
Normalmente, referimo-nos a estas duas posições:

1. Quando o clítico está antes do verbo, temos próclise.
2. Se o clítico estiver depois do verbo, há ênclise.

Até aqui, tudo fácil, não é? Infelizmente, em linguística há sempre uma exceção, ou uma data de regras, ou uma série de construções frásicas, que decidem dificultar-nos a vida. Como gostam de dizer os linguistas, "quando há ciência, tudo tem de ser explicado"!

Assim sendo, foquemo-nos em construções com verbos auxiliares (do tipo "devia ter contado", como o nosso exemplo de partida). Quando há construções deste tipo, os clíticos nunca se associam ao verbo principal (nunca poderemos ter uma frase do tipo *"devia ter contado-te"), estando o verbo principal no particípio. Pelo contrário, associam-se ao auxiliar mais perto do verbo principal. Isto é, num exemplo como este, em que há dois auxiliares (dever e ter), o clítico surge, preferencialmente, acoplado ao verbo auxiliar "ter", que é o que está mais próximo do verbo principal. Daí que a opção mais correta, de um ponto de vista gramatical, seja "devia ter-te contado tudo".

Mas "devia-te ter contado tudo" não soa assim tão mal, pois não? Pois não. Mais uma vez, as gramáticas têm resposta. Existe um fenómeno linguístico chamado subida do clítico. Como vimos, numa frase simples, o clítico situa-se em posição de ênclise junto do verbo principal em português europeu - ou em posição proclítica em português do Brasil. Com um auxiliar, o clítico "sobe" para uma posição adjacente a esse auxiliar. Numa frase, como a do exemplo, com dois auxiliares, não é agramatical usarmos o clítico junto do primeiro auxiliar. Cenários como este são possíveis com verbos auxiliares do tipo começar, estar, dever, poder, etc. 

Se o verbo principal estiver no infinitivo, o clítico oscila muito mais entre a associação ao auxiliar ou ao verbo principal ("vou contar-vos uma história" ou "vou-vos contar uma história"). 

Os desencadeadores

Até aqui, percebemos como funciona o posicionamento dos clíticos em frases simples e com verbos auxiliares. Percebemos também que, em português europeu, a ênclise é preferencial. Mas como escrevi logo no início, esse posicionamento pode estar dependente de desencadeadores, que forçam a existência de próclise, ou seja, que "obrigam" o clítico a mudar-se para uma posição anterior ao verbo a que está acoplado. 

São alguns desses desencadeadores a negação, algumas interrogativas, a subordinação, as frases relativas e certos advérbios como , mesmo, apenas, entre outros. Exemplos:

  • Não o vi.
  • Quem o viu?
  • Ele disse que o viu. 
  • O livro que te dei ontem é bom.
  • Só ele o viu. 

Nota extra:

- Em português, sobretudo num registo oral, é muito comum fazer aquilo a que a Gramática da Língua Portuguesa chama de "redobro do clítico". Nem sempre é gramatical, mas há algumas construções em que é aceite. O que acontece com o clítico é que, apesar da sua natureza de complemento verbal, nem sempre surge na posição onde o complemento verbal normalmente está. E a língua permite que essa posição vazia seja preenchida pelo complemento verbal que o pronome representa. É o caso de:
  • Ele deu-me a mim as flores.
  • Nós conhecemo-nos a nós próprios.
Isto do redobro do clítico é bem mais complicado do que esta breve explicação, mas vou ficar-me por aqui, para não dificultar demasiado. 

Para vários exemplos e mais definições sobre pronomes átonos em português europeu, vejam aqui.

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