Ana Maria Brito é professora catedrática na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e coautora da Gramática da Língua Portuguesa (2003) e é a primeira convidada do Estudar a Língua para iniciar um ciclo de entrevistas que o Estudar a Língua vai fazer a diversos especialistas da língua portuguesa. Nesta entrevista, falamos das diversas variedades do português e ainda abordamos a importância da sintaxe, área de especialização da autora.
Fala-se muito
nas diferenças entre o português do Brasil e o português europeu. Pode apontar
as principais?
A maior variação é no sistema fonológico, naquilo que se
chama vulgarmente a “pronúncia”. O sistema vocálico é mais reduzido e mais
aberto. No plano lexical há também diferenças que têm a ver quer com novas
palavras (muitos empréstimos de origem inglesa entraram facilmente na língua
(”xerox”, fotocópia) quer com as mesmas palavras com um sentido novo, como
“terno” (fato), “ónibus” (autocarro), “café da manhã” (pequeno almoço), quer
com empréstimos de origem tupi (“abacaxi”) e africana (“sanzala”).
Do ponto de vista morfossintático e sintático, uma das
principais diferenças face ao PE relaciona-se com o sistema pronominal e com a
concordância sujeito – verbo e com a flexão verbal. À parte uma zona no Sul que
conserva ainda o “tu” como forma de tratamento do interlocutor, o PB usa
predominantemente “você” e “vocês”, levando o verbo a tomar formas de terceira
pessoa do singular e do plural: “você sabe…” “vocês sabiam…”. Também “nós” é
muitas vezes substituído por “a gente”, igualmente justificando uma forma de 3ª
pessoa do singular (“a gente sabe”). Como resultado, os paradigmas verbais são
mais reduzidos do que no PE. Claro que, como o país é extenso e complexo,
existe enorme variação quer do ponto de vista dialectal quer e principalmente
do ponto de vista social; por isso, quando falamos em variação em relação ao
PE, estamos a falar sobretudo de um PB vernáculo e oral, das classes mais
desfavorecidas, que coexiste com um PB culto, que é o das classes escolarizadas
e socialmente mais elevadas.
Outras diferenças dignas de nota: a diferente colocação dos
pronomes átonos ou clíticos, com predomínio da próclise (“me diga uma coisa”); o
uso de formas fortes dos pronomes em vez de formas átonas, como em “eu vi ele”
em vez de “eu vi-o”; a produtividade do gerúndio nas formas progressivas
(“estou vendo”), o uso de “ter” como verbo existencial (“tem gente aqui….”), o
uso de formas possessivas isoladas, sem artigo definido, como em “minha
carteira”, em vez de “a minha carteira”; também a redução na concordância nas
expressões nominais é digna de nota: é frequente ouvir-se “os menino”, em que a
marca de plural está reduzida ao artigo e não surge no nome.
Muitos falantes nativos de português do Brasil “queixam-se”
de perceberem mal o português europeu. Isto tem que ver com uma diferente
evolução da língua nos dois países?
Sim, claro; por várias razões que estão relacionadas com a
forma como a língua portuguesa foi deslocada para o Brasil, com o contacto de
línguas a que o Português foi exposto na colonização (quer com línguas índias
quer com línguas africanas, quer mais tarde com línguas de emigrantes de várias
nacionalidades, italianos, alemães, árabes, etc), o sistema fonológico foi
muito alterado e uma das principais é a maior abertura das vogais e o
desaparecimento de uma regra muito importante no PE que é a do vocalismo átono.
No PE uma vogal não acentuada é fechada como em “morar”, pronunciada como
“murar”; ora no Brasil a pronúncia é com o “o” semiaberto: “morar”. Por isso os
falantes do PB por vezes não entendem muito bem falantes do PE, porque vão
ouvir mutas vogais fechadas e muitos grupos consonânticos como “pn” (“pneu”)
que um PB pronuncia como “peneu”.
E quanto às
restantes variedades do português?
Em África estamos a assistir também à emergência de
variedades nacionais, o PM e o PA, em particular, embora ainda não de forma tão
estável como o PB. O Português está nesses países em situação de forte contacto
de línguas, é língua não materna para grande parte das populações, embora haja
grandes diferenças entre cidade / campo, entre jovem / idoso, entre falante
escolarizado / não escolarizado, mesmo entre homem / mulher. Os recenseamentos
realizados nesses países mostram dados mais ou menos seguros sobre tudo isso e
revelam também que o Português está a aumentar o número de falantes como L2, sendo
claramente uma língua de prestígio.
Mas o Português está a mudar nesses países: além da parte
vocabular, com muitos empréstimos das línguas Bantu e da parte fonológica, há
também algumas diferenças morfossintáticas e sintáticas. No PA por exemplo, a
construção ditransitiva tende a ser realizada com a preposição “em”: “dar na
mãe uma prenda”; no PM, tal construção tende a perder a preposição: “dar a mãe
uma prenda”. Em ambos os países nota-se um predomínio da preposição “em” usada
mesmo com verbos de movimento e de deslocação: “chegar no mercado”, em vez de
“chegar ao mercado”. No PM, está já registado e estudado um fenómeno de
“dequeísmo” e paraquísmo” nas orações integrantes: “ eu vi de que ele chegou
tarde”; “eu disse para que ele visse”.
Dada a situação de relativa instabilidade do Português em
Angola e Moçambique é portanto de prever que mudanças continuem a operar na
língua.
Centremo-nos
no português de Portugal. Existe alguma diferença gramatical profunda entre
dialectos?
Portugal é um país bastante uniforme do ponto de vista da
gramática da língua, que se relaciona com o facto de a língua se ter
estabilizado há mais de oito séculos num território pequeno e que mantém as
suas fronteiras. Mas há variação dialectal forte mais uma vez no plano fonético
e fonológico, existindo os chamados dialectos setentrionais e os
centro-meridionais, além dos dialectos insulares. No plano morfossintático e
sintático existem alguns fenómenos interessantes, sobretudo quando estão em
jogo falantes mais idosos, menos escolarizados e mais afastados dos centros
urbanos: assim, há que registar o uso do gerúndio no Alentejo e Algarve nas
construções progressivas (“estou vendo”) o uso de “ter” existencial,
curiosamente dois fenómenos que reencontramos no PB; no Alentejo pode ainda
hoje ouvir-se por falantes mais velhos e menos escolarizados um gerúndio
flexionado (“em (tu) estandes pronto”….).
"Há que dar mais atenção à parte gramatical no ensino"
É
sintaticista. O que pode dizer a um leigo sobre a preponderância da sintaxe
para o uso correcto da língua?
A sintaxe é a base da gramática, é o “esqueleto” da língua…
São as regras sintáticas que orientam a formação de frases simples e complexas,
no que respeita à ordem de palavras, à concordância, à selecção entre palavras,
às relações anafóricas, etc. Por isso, um bom domínio da sintaxe da língua é
essencial para falar e escrever bem, com clareza e objetividade, para
argumentar no discurso, para convencer o nosso interlocutor acerca de
determinada ideia ou conteúdo.
Embora eu não seja pessimista no que respeita ao uso da
língua pelas jovens gerações e veja com bons olhos o acesso que grande parte da
população tem em relação à língua e às suas manifestações, quer pelo acesso à
televisão, à rádio e principalmente às novas tecnologias de informação, não há
dúvida de que muitos dos nossos jovens usam por vezes uma sintaxe pobre nas
suas produções linguísticas e não tiram proveito dos inúmeros recursos da
gramática da língua portuguesa. Há que dar mais atenção à parte gramatical e
sintática da língua no ensino e não abandonar a reflexão gramatical nos níveis
mais avançados, como se faz atualmnete no ensino secundário, no pressuposto de
que os alunos já sabem o essencial de gramática. Isso não é verdade, por
variadíssimas razões, e por isso sou a favor de um ensino de Português que dê
grande espaço à reflexão gramatical.
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