Maria Helena Mira Mateus, professora catedrática jubilada pela Universidade de Lisboa, é um dos nomes de referência da linguística em Portugal. Coautora da Gramática da Língua Portuguesa (2003), dá agora continuidade ao ciclo de entrevistas do Estudar a Língua, abordando um dos assuntos mais discutidos nos últimos anos: o Acordo Ortográfico. E chama ainda a atenção para aspetos fundamentais da língua que são "descuidados" nos programas de ensino.
Foto: Ciberdúvidas |
O Ministério da Educação do Brasil está a
estudar medidas para retirar a literatura portuguesa do ensino. Que
consequências a longo prazo poderiam ter tais medidas para a língua portuguesa
e para uma maior unicidade da língua entre Portugal e o Brasil?
Não
vejo que manter ou retirar o caráter obrigatório do ensino da literatura
portuguesa tenha qualquer influência na manutenção das diferenças existentes
entre as variedades do português europeu e do português brasileiro. O uso
quotidiano da língua ultrapassa imensamente a influência que pode advir do
conhecimento de textos literários. É evidente por outro lado que, ao retirar do
ensino a obrigação de incluir alguns módulos sobre a literatura portuguesa, se
diminui o já pouco conhecimento que existe no Brasil sobre épocas e
características dessa literatura, ficando entregue aos professores a decisão de
ensinarem aspetos desse tema de acordo com os seus interesses pessoais. Tendo
em conta que o ensino de autores portugueses não tem apenas como objetivo discutir
aspetos linguísticos, penso que se deve fazer sobressair neste ensino os
aspetos culturais que a literatura sempre transmite. Julgo também necessário
que se dê lugar a outras variedades do português como as variedades faladas em
África, por exemplo. E por fim acho fundamental que a literatura produzida em
língua portuguesa, de qualquer das variedades, seja objeto de meios de
comunicação e de formas de apresentação ao público estimulantes e
esclarecedoras.
Estaremos a caminhar para uma divisão, além da já existente divisão dialectal,
entre o português do Brasil e o português europeu? Há algum papel do AO nesse
caminho?
A
preocupação do AO em unificar a escrita entre as variedades da língua
portuguesa tem um objetivo relevante para a expansão do livro e de outros meios
em que a grafia da língua seja necessária, e tem uma concretização económica
não despicienda. Trata-se apenas de uma unificação ortográfica que não tem como
finalidade diminuir as diferenças entre português brasileiro e português
europeu (ou entre outras formas de falar português nos países que pertencem à
CPLP), diferenças que são evidentes na oralidade da língua. A manutenção das
variedades no âmbito de uma certa língua (como o português, o inglês, o francês
ou outras línguas que foram “exportadas” no processo de colonização) é uma opção política e representa para os cidadãos
de vários países o interesse de estarem integrados numa vasta área que tem em
comum a língua em que falam e em que escrevem. É evidente, por outro lado, que
estas variedades exibem, no plano interno de cada uma, algumas diferenças que
correspondem a grupos geográficos ou sociais e que se denominam dialetos, o que
só reforça o conceito de que a variação das línguas é universal e se processa
no tempo, resultando de vários fatores, sobretudo do contacto entre línguas.
Falando do AO, já se cumpriram seis anos desde a sua implementação, mas muitos
falantes ainda não o aceitaram. Há consequências possíveis para a língua (como
por exemplo, haver ortografias diferentes entre diferentes facções da
sociedade)?
As
diferenças que vão alterando uma língua em consequência da sua utilização pelos
falantes só em casos muito excecionais estão relacionadas com mudanças da
grafia. A ortografia de uma língua é estabelecida de forma convencional e
representa a normalização da escrita; é decidida geralmente no seio das
academias de letras ou de ciências e não altera a pronúncia; é portanto sempre secundária em relação à
oralidade. Na língua portuguesa, uma das primeiras reformas ortográficas data
de 1911. Foi com esta reforma que se decidiu suprimir o <h> que se
associava a consoantes em certas palavras como “pharmacia" representando
uma aspiração que já não era sentida na língua oral. O primeiro acordo
ortográfico entre Portugal e Brasil data de 1931 e aí se propunha a eliminação
das consoantes “mudas” que fazem parte do novo acordo de 1990. Tendo presente o
caráter convencional da ortografia, ela tem possibilidade de integrar alterações
que correspondem a mudanças da língua provocadas pelo uso. Evidentemente, não
se trata de transmitir a intervalos breves as alterações que se manifestam na
oralidade e por isso a ortografia mantém sempre um caráter conservador. Quando
as entidades próprias consideram que existem suficientes razões para se
alterarem certos aspetos obsoletos de uma ortografia, a mudança deve ser
transmitida na escola e na documentação oficial, e passar a integrar a norma.
Na escrita individual, sem caráter oficial ou escolar a ortografia antiga pode
ser mantida sem consequências visto que as mudanças não alteram a pronúncia da
língua.
"Sintaxe e semântica são muito descuidadas na
escola"
Como vê a situação da linguística no ensino da língua e que soluções propõe
para termos uma sociedade mais “atraída” para as questões da língua?
Ao
contrário do que se julga, as pessoas são atraídas pelas questões da língua, e
preocupam-se sobretudo com as pronúncias “corretas” e com as normas de dialetos
ou de variedades, exercendo sempre juízos de valor e até julgamentos morais. O
que afasta as pessoas é a coincidência entre o estudo da língua e os estudos
teóricos ou científicos, ou até
simplesmente gramaticais, desligados da aplicação prática. Há poucos estudos sobre
as infrações na sintaxe ou na semântica que sirvam para demonstrar que essas
infrações têm consequências graves, perigosas ou simplesmente risíveis. E no
entanto, essas áreas são muito descuidadas na escola em benefício dos “erros
ortográficos” porque estes são o que mais facilmente se pode corrigir sem
possibilidade de discussão.
Maria Helena Mateus escreveu recentemente um artigo sobre o Acordo Ortográfico no jornal Público. Podem lê-lo aqui.
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